Renato está desempregado e fica em casa. Jandira sustenta a família nestes meses duros. Renato percebe que Jandira mudou: reclama mais, está distante e não quer sexo. Ele sente duplamente: o afastamento da mulher e nada de rendimentos no bolso. Guardou tudo no coração ou no estômago, depende do gosto.
Um dia sentados para o jantar um rato, destes pequenos, apareceu na cozinha. Renato levantou-se para matá-lo, mas, o animal entrou num pequeno buraco na parede, ele então aproveitou e tampou o buraco com papel.
Um, dois, três dias e o rato preso.
Durante o café Renato faz elogios a beleza de Jandira. Jandira solapa sua frase dizendo: este rato rói o papel, vejo seus dentes daqui. Impossível, retrucou Renato coloquei bastante papel, vou cansá-lo primeiro antes de matá-lo. Você está dizendo que minto? Porque ninguém acredita em mim, porque você não acredita em mim?!! A confusão se instalou, discutiram, ficaram fechados e foram ao trabalho sem se falar direito, tiveram uma despedida chocha com um falso beijo.
Maldito rato, diriam alguns.
Nada! Maldito silêncio. Poderia ser um urso, um javali, uma mosca... uma gota d'água. Tudo serviria como estopim, como gatilho, como subterfúgio para vir à tona experiências não significadas (frustrações) deste casal. No caso de Jandira um autoconceito de desvalor sobre si mesma, sentida por algum tempo que mina sua auto-estima. Renato não fica longe, sentindo o drama de sua pequenez nesta instabilidade financeira e afetiva.
Falar, expressar, chorar, desesperar-se diante de alguém/especialista de confiança é fundamental para ajustar-se em sua própria órbita e viver com saúde mental, apesar dos problemas.
Todo 'dito' torna a relação conosco mesmo, com a comunidade, com a família, bendita.
Todo 'não-dito' tem o efeito contrário, torna maldita a relação com quem quer que seja. Inclusive um pequeno roedor adquire um grande poder de abalar uma relação.
Três letras e um mar de significados para nossa estrutura psíquica. Fundamentalmente precisamos de seu vínculo quando bebês e de que ela se afaste aos poucos nos dando capacidades de ir em frente sozinhos. Este afastamento inicial ocorre no parto, no desmame, no bebê ficar só por um tempo enquanto ela tem seus afazeres... Aos poucos se espera que criemos força psíquica neste vai e vem da presença ou não dela.
A confiança e as perdas vividas na infância deve nos fortalecer os músculos da mente e do espírito para lidarmos com tantos fracassos e suporte para o ego nos anos seguintes do existir. Grande tarefa a relação da mãe com o bebê e o nosso destino humano.
De repente, quando um dia perdemos definitivamente sua presença física, com a morte dela que chega, perdemos a mestra que nos exercitou - quase sempre inconscientemente - para arte de ganhar e perder. Porém, se espera que agora adultos, junto com o sentimento da dor que fica, se compreenda o valor de seu significado para formação de nossa saúde mental.
Para quem tem fé eis mais um artifício para superar a dor: a confiança de saber que quem lhe fez tanto bem foi acolhida noutra dimensão abranda a alma e ter certo que tudo aqui é impermanente, atenua o drama e nos prepara para o imponderável nesta vida. Vá em paz mãe.
Sartre disse algo assim: 'Nunca se é homem enquanto não se encontra algo pela qual se estaria disposto a morrer'. Uma afirmação crucial para entender e existir no tempo em que vivemos, conhecido por modernidade líquida, em que tudo 'é volátil, as relações humanas não são mais tangíveis e a vida em conjunto, familiar, de casais, de grupos de amigos, de afinidades políticas e assim por diante, perde consistência e estabilidade' (Bauman).
Pisamos em um terreno frágil que se desfaz como casca de ovos, antes se morria pela pátria, por Deus, por religiões, etc. Por quem hoje estaríamos dispostos a morrer no mundo Ocidental? O que nos resta de sagrado? Luc Ferry nos ajuda a ver que só a família (núcleo mais restrito) restou como sagrado e pela qual alguém daria até a vida.
Vivemos em um tempo em que os vínculos tem raízes rasteiras e o sentido de pertença tão instável quanto gelo no calor. Se o cenário é nebuloso (como a foto acima), não deixa de ser também misterioso, cheio de encantos e um chamamento para o conhecimento de nossa época e de nós mesmos.
Nem sempre nos damos conta das extensões do nosso eu, geralmente há uma impressão de que nossa referência pessoal reside numa instância dentro de nós e só. Todavia, muito do que somos acontece quando nos relacionamos - surge na relação com o outro (seja este outro pessoas, animais, natureza ou até mesmo objetos sem vida).
O quarto, a gaveta, os objetos pessoais, para ficar por aqui nos exemplos, são defendidos com rigor quando alguém sem permissão invade estes territórios, como se invadissem nosso próprio eu. Outros chegam as raias do suicídio quando uma paixão vai embora, como se o próprio eu fosse junto. O apego a objetos ou pessoas dão uma boa esticada ao nosso eu, há aqueles que tem um 'euzão' com tantas coisas a administrar que uma velha anedota explica bem o caso, lembrando que, piadas são também um reflexo da angústia do ser humano, rimos daquilo que temos dificuldade em aceitar ou explicar:
"Acidenta-se um automóvel. O condutor surge das ferragens e geme:
- Meu Mercedes...Meu Mercedes...
Alguém diz:
- Mas, senhor... que importa o carro? Não vê que perdeu um braço?
O garotinho do vizinho está aprendendo a falar e a tudo que tem quatro patas ele diz: 'au, au'. Ele generaliza, mas, à medida que, se desenvolve vai aprender que nem todo bicho de quatro patas é cachorro. Assimilará as especificações de cada coisa.
Infância, criança, adolescência, juventude, vida adulta e velhice. Mesmo passando por todas estas etapas ele não conseguirá entender todas as especificações, todas as sutilezas e matizes que cada ser carrega - seja bicho, seja gente.
Assim nas duas últimas décadas tenho observado as sutilezas e matizes das 'pessoas boas'. E se não me assusto tanto, talvez, porque já não levanto a bandeira das expectativas diante delas. Quando posso aceno para os desavisados, vai com calma em sua identificação meu rapaz!
Dá em cachos o número de reacionários, eugenistas, fascistas, xenófobos... entre as 'pessoas boas'. Inicialmente tem um sorriso no rosto e acolhimento generoso. Mas, escutem suas idéias e o rumo de sua linha de pensamento, observem bem suas práticas de generosidade amalgamadas com (sutil) diminuição do outro, punições ilegais, vinganças e vez por outra festa. Objetivo: gerar confusão de afetos.
Considerável parcela da população desacostumada que é de qualificação de afetos (baixa cultura da escuta no meio familiar) cai como mosca no mel diante dos 'bondosos'. Pode-se dizer, que como o garotinho filho de meu vizinho que diz au, au para todo bicho de quatro patas, alguns sujeitos acreditam em bondade aos primeiros sinais de generosidade.
Pascal (1623 - 1662) há um bocado de tempo alertou: "não há pior forma de maldade do que aquela feita com gestos de bondade".
Como parte de nosso programa de férias fizemos eu e meu garoto um passeio pelo cotidiano da cidade. Feiras, mercados...e uma oficina mecânica. Caminhando entre muita gente e ele sobre meus ombros, lá de cima disse: vou cantar bem alto! E começou um pot-pourri quase gritando: o sapo não lava o pé...borboletinha tá na cozinha fazendo chocolate... e emendava uma música na outra, para sorriso e encanto de quem passava por nós. Ele carregava na mão um brinquedo de fazer bolas de sabão e, a medida que , caminhávamos o rastro com centenas de bolas enfeitava o caminho para deleite dos adultos de passos apressados e rostos preocupados.
Entramos na oficina de chão escuro, de tanto óleo impregnado, com a cantoria do menino e as bolhas de sabão que de imediato mudou o astral do ambiente. Todos olhavam para figurinha de pessoa com tamanha espontaneidade. O riso surpreso estava garantido entre os funcionários da oficina. Ficamos boa parte da manhã por lá. Ao final da tarde voltei sozinho a oficina e o mecânico um senhor de meia idade, cabelos grisalhos e um volumoso bigode perguntou:
- Cadê o garotinho? Respondi que ele ficara dormindo em casa.
Ele então disse:
- Eu não tive a sorte do seu garotinho - e tremeu a voz - eu não tenho ninguém de minha família perto de mim e nem quero ter. Quando criança por volta dos 4 anos via muito meu pai agredir minha mãe. Eu na idade de seu garoto meu pai chamava-me de manhã para trabalhar com ele e chamava somente uma vez. Caso eu não acordasse me chutava por debaixo da rede e me dava soco no rosto, houve um dia que até desmaiei.
Ele nesse momento mostrou-me seus braços que tremiam e lágrimas que teimavam em rolar em seu rosto.
- Nunca fui criança - reforçou ele.
Naquele dia vi uma criança que chora, geme e treme em um adulto.
Estes dias estive numa confraternização de Natal e final de ano. Encontrei uma pessoa que nunca vira, até então. Imediato senti empatia por ela, uma mulher creio com seus 60 anos. Brinquei sobre o que percebi em seu jeito bem cuidado de ser. Ela contou-me de seu trabalho voluntário há sete anos naquela instituição responsável por vários adolescentes e crianças. Ao final era ela minha amiga oculta, coincidência.
Fiquei pensando com meus botões sobre certas pessoas que conhecemos. Algumas dão a impressão que já eram conhecidas como se trouxessem um 'sinal da eternidade'. Aí pousa a lógica que acena para realidade e me diz: "o que deixa estas pessoas próxima de você é o nível de bondade que elas carregam em suas práticas e o sonho de um mundo melhor, a afinidade que se aproxima de teus ideais."
Ocorre então como uma faixa de rádio que cai direitinho em sintonia - a voz fica límpida, o som fica claro. Diferentemente há pessoas que como faixas de rádio fora da sintonia: a chiadeira é total, nada se escuta, nada se entende.
O desejo do bem comum poderia ser uma afinidade entre os humanos, tudo ficaria mais simples e a casa Terra se transformaria num lar ao invés de um condomínio em que uns se escondem dos outros em nome do individualismo, travestido de poderezinhos tolos.
Tenho um velho jipe e gosto muito de dirigi-lo, na verdade, ele tem 15 anos e não o considero obsoleto. Gosto dele, sobretudo, do seu jeitão simples e porque me leva a lugares pouco explorados.
Hoje pela manhã no começo do caminho diário (creche do garoto, trabalho da companheira e meu trabalho) o freio de mão travou as engrenagens da caixa de marchas e ele teimosamente não saiu do lugar. Resultado: ligar para o reboque do Seguro e oficina, em duas horas o jipe estava liberado.
Na semana anterior reboquei um carro de porte médio que o mar estava engolindo, o dono desavisado começou a pescar e esqueceu da maré que enchia. Avisaram-me e como estava por perto consegui puxar o carro do postulante a pescador que ficou muito agradecido. Uns dias atrás já estava dormindo quando um conhecido me pediu para rebocar o carro dele que ficara na estrada, fui com toda presteza e sinto-me bem quando ajudo. Esta semana vi da minha casa que alguém aqui perto precisava de ajuda, fui até lá e primeiro tentei empurrar seu carro, nada, resolvi puxá-lo com o jipe até uma oficina mais próxima.
Hoje enquanto esperava o reboque do Seguro chegar, com meu filhinho no colo na beira da estrada, uma das pessoas que ajudei passou por mim e mesmo vendo o jipe parado com sinal de alerta, olhou para o carro e seguiu adiante. Depois disse que me viu, e só, nenhum complemento a mais na frase. Mas, o bom desta história estava para acontecer.
Um jovem senhor que, até então, nunca o vira parou seu carro a cerca de 50 metros, num retorno à frente, e vendo minha situação fez um sinal com a mão. Um pouco desconfiado fui lá:
- Pois não Senhor, disse.
- Vejo que precisa de ajuda seu filho está com o uniforme da escola e eu estou com minha filha (cerca de cinco anos no banco de trás) que também está indo para creche, caso queira posso levá-los.
- Não é perto moço, avisei.
- Não há de quê quero ajudá-lo por dois motivos: primeiro pelo seu filho, segundo, porque gosto de jipes.
No caminho fomos conversando e ele falou-me de sua família, de seu trabalho, do trânsito e compartilhamos muitas coisas em comum. A marca de sua gentileza foi algo tão legal que o resto do dia todo transcorreu bem. Claro, o mundo ficou melhor. Passou um filme em minha mente do quanto somos dementes e, ainda bem, que somos também sapientes. Gentileza gera gentileza.
Quando se tem a impressão que o tempo passou rápido demais, não foi o tempo, fomos nós que andamos apressadamente com as pernas, num veículo qualquer ou com a nossa mente. Einstein já explicou boa parte disto na sua genial teoria.
Da janela de meu velho jipe vi um outdoor, numa avenida larga, num bairro considerado chique aqui da cidade: "Se em 2010 o tempo passou rápido é sinal que você está vivendo bem o seu tempo, em 2011 conte com a gente."Sei não, duvidei de imediato daquela frase metida a ensinamento de sabedoria de começo de ano, porém, vi nela uma revelação da fugacidade de nosso tempo pós-moderno: ansiedade, pressa, fast-food, cansaço, workaholic, obssesões de várias espécies. Como se o bom tivesse que ser instantâneo.
Talvez precisemos aprender com as crianças pequenas, para elas o dia passa mais devagar porque o que fazem o fazem por prazer e suas mentes vivem mais o tempo presente. A semana demora acabar, o próximo Natal então como demora chegar. Já os adultos identificados com a frase do outdoor, citado acima, já estão remoendo-se mentalmente: tenho que correr 2012 já está aí!!
Estava numa fila de supermercado estes dias próximo ao final de ano. Até chegar ao caixa passa-se por prateleiras de bombons, doces, guloseimas de todos os tipos e muitas revistas. Esta é uma estratégia dos supermercadistas para que nos últimos passos do cliente, antes do pagamento, se leve algo a mais. Meus olhos acompanhavam aquele vale de abundância de comidas, mas, chamou-me atenção a capa de uma revista com uma celebridade estampada em foto e a frase: ‘estou apaixonada vou me casar’.
Ora, todos tem a liberdade de fazer o que querem de suas vidas, casar, descasar, viver, morrer, namorar, ficar só e uma infinidade de outras coisas. Mas, fiquei pensando com meus botões nesta frase, fui dirigindo meu jipe até a praia e a frase me acompanhava.
Apaixonar-se e casamento. Apaixonar-se não é difícil, podemos nos apaixonar até por uma fotografia, podemos nos apaixonar até por alguém que nunca vimos ou que vimos poucas vezes ou por alguém que a primeira vista nossos olhos brilharam e provocou uma sensação, como se borboletas passassem a bater asas no lado esquerdo do peito. Apaixonar-se estar para emoção, o prazer, a identificação, o sexo, a novidade, porque não dizer, para certa dose de loucura. Uma loucura que nos faz sentir vivos é verdade. Apaixonar-se e namorar é uma das mais belas experiências humanas, certamente.
Agora casamento é outra estória. Disse certa vez alguém: ‘O casamento põe fim a breves loucuras’. Casar significa morar junto, dormir juntos, construir casa juntos, partilhar estórias pessoais (dores, alegrias, dúvidas, risos, angústias...) e cumplicidades que com o tempo imperfeições, incompreensões se revelam por conta da intimidade própria deste tipo de vínculo. Então é próprio deste envolvimento, com o passar do tempo, os ideais revelarem-se mais próximos da realidade (surgindo a partir daí as crises). Caso os dois não tiverem um razoável aperfeiçoamento pessoal, acaba o casamento ou vive-se uma relação conturbada ou em função de filhos, da religião, dos outros ou de instituições.
Um homem e uma mulher muitas vezes se casam porque vêem no outro uma fonte de satisfação. Um encontro que momentaneamente faz desaparecer o que todos somos, também, no íntimo: confusos, sozinhos e embaraçados. Como muitas vezes, inconscientemente, não sabemos o que fazer conosco mesmos nos unimos. No fundo um pavor da solidão. Que pode continuar mesmo depois de juntos, ou seja, pode passar a ser duas solidões.
Por isso, o autoconhecimento, uma cultura psíquica é necessária, fundamental hoje, no mundo pós-moderno, para alguém que deseje se casar. Então dizer: ‘estou apaixonada vou me casar’, dita assim simplesmente, é válida enquanto livre arbítrio a que cada pessoa tem direito, porém, não é condição sine qua non. Ficar apaixonada não garante, absolutamente, que alguém será bem sucedida ao casar-se. Isto tem muito de ilusão ou tolice. Está apaixonada? Ótimo, então namore bastante.
É da natureza da paixão diminuir e até acabar. Claro, pode-se apaixonar de novo pela mesma pessoa, mas, não como no começo da relação. Então se pouco se conhece sobre a natureza do amor, da paixão, do ser homem, do ser mulher e depois sobre a educação de filhos, construção de família baseado no diálogo e escuta, como pode se pensar em casamento (no sentido coloquial de relação durável, estável e estruturação familiar)? “Estou apaixonada vou me casar” é uma expressão tão frágil, quanto a relação que se pretenda construir baseada numa atração sentimental por si só.
Não há dúvida que Nicola Winton incorpora em si o que disse certa vez Gandhi: "minha mensagem é minha vida."A vida de Nicola não pode passar desconhecida, as escolas desde cedo deviam exibir em vídeo sua biografia e o que fez pelas crianças de seu continente em guerra.
Homem simples senão fosse sua esposa não teríamos acesso a este arquivo. Ele desperta a 'imagem de bondade' presente em nós e que mora no avesso de nosso coração. Ele escancara o arquétipo do Homem Bom.
Todos possuímos sentimento de bondade: choramos, temos desejo de ajudar, por exemplo, diante de cenas de dor, miséria e sofrimento. Muitas vezes confundimos este sentimento de bondade com a Bondade (fruto do esforço). Não há dúvida que mostrar sentimentos de bondade seja um sinal de humanidade. Mas, é sinal, predisposição. Tornar-se BONDADE REAL é outra história.
Nicola Winton é um homem de nosso tempo, creio que ainda esteja vivo, despertou sua 'imagem de bondade', foi além do sentimento. Fez acontecer a BONDADE REAL, filha do esforço.
Depois de amanhã já é, mais uma vez, comemorado o Natal. Eu particularmente não me encanto com o consumo típico da época. E o sentido mesmo deste período vejo em gestos como o de Nicola Winton: uma assombrosa comunhão com o outro, mesmo este outro sendo fonte de identidade e de diferença, desperta em si mesmo a grandeza do Mistério. Mistério paradoxal que mistura nossas fraquezas e fortalezas, nosso lado humano e além-do-humano.
Um Natal com a disposição de despertar a 'imagem de bondade' existente em cada um de nós. Desejo a todos.
Trabalhava para uma instituição numa metrópole na Amazônia. Certo dia uma colega de trabalho despediu-se para estudar e trabalhar noutra cidade. Naquele dia de tristeza pela partida e alegria pelos bons serviços prestados todos ali diziam, em unaminidade, sobre os benefícios de ter convivido com ela.
Uma das palavras ditas por um senhor já idoso para aquela amiga chamou-me atenção: "ela está recebendo muitos elogios é bom recebê-los, porém, estes elogios não são somente para ela, são também para todos que no passado e no presente de alguma forma ajudaram a formar sua personalidade". E dentro de mim completei: por isso, elogios não são para envaidecimento, mas, para agradecimento à comunidade humana que atravessa nossa subjetividade e eternamente fará parte de nós.
Descobri esta sabedoria em minhas doces e amargas experiências pessoais bem antes deste episódio da despedida daquela amiga. Aquele dia, no entanto, foi um estalo, um insight, que fez fechar uma configuração sobre este entendimento.
Depois de alguns anos conheci um conceito humano, no sentido profundo da palavra, de origem africana: UBUNTU.
UBUNTU é o mergulho em um sentimento de que somos humanos somente por intermédio da humanidade dos outros. Qualquer ação que fizermos neste mundo é devido em igual medida aos trabalhos e realizações dos outros. Há uma máxima africana que diz: umuntu ngumuntu ngabantu - uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas.
Este antigo conceito se assemelha ao de pensadores modernos como Morin, Capra entre outros. Além disto, é uma urgência para o mundo pós-moderno.
Há situações que fogem ao nosso controle, há situações que não podemos ter controle nenhum. Este deveria ser um entendimento básico, tranquila compreensão para os pobres mortais. Mas, não é o que acontece. A falta desta compreensão é o motivo de grandes sofrimentos, de dores emocionais, por vezes, dramáticas.
Quem já entendeu e assimilou isto vê como grande limitação atitudes de pessoas que diante do imponderável (aquilo que não se pode prever) esperneiam feito crianças mimadas.
Por exemplo: o dia está claro agora e de repente...uma chuva torrencial não permite que você saia a um encontro marcado. Segue-se uma enchurrada de impropérios de todas as espécies contra os céus como se isto lhe desse algum poder de fazer a chuva parar. Outro exemplo: o filho adulto bem sucedido viaja por vários anos, sujeito responsável, constrói casa e casa-se. A mãe não queria que ele casasse e não aceita por nada neste mundo a parceira do filho, sem explicar porquê, não visita e pouco fala com o filho.
Noutro caso o sujeito planejou toda sua vida ao sair de casa. O curso universitário, as notas das provas, as amizades, as namoradas, o casamento, os filhos, as viagens... todavia a maioria das estratégias usadas não alcançaram os objetivos traçados. O sujeito deprime sentindo-se inferior aos demais.
Passaria minha vida toda descrevendo situações reais motivo de sofrimentos, em síntese: o Eu ideal bem distante do Eu real.
Geralmente ocorre que esquecemos de dar lugar para o IMPONDERÁVEL em nossas vidas. Esquecemos daquilo que foge ao nosso controle, daquilo que não cabe em nossos planejamentos, daquilo que não podemos prever.
Como pouco se reflete sobre o IMPONDERÁVEL, as perdas se tornam dramáticas e a maior delas, a morte, incompreensível.
Em muitas culturas o pênis é símbolo de poder. Em alguns grupos ele é ostentado, motivo de piadas, contos e lendas. Para muitos homens é uma desgraça quando ele não funciona a contento, na hora ‘H’. Na puberdade e até entre adultos quanto maior o penis proporcionalmente o sujeito se sente macho. E parceiras dadas a não muita reflexão certamente sentia-se/sentem-se atraídas por tal objeto de poder e sedução.
Hoje em dia há até quem prometa exercícios para que o epicentro da sexualidade masculina cresça alguns centímetros. E há quem pague caro por isso. Pois bem, é comum quando nos falta respostas para vazios no Ser encontrar-se compensações deste tipo.
Atualmente alguns objetos adquiriram status semelhante ao do pênis. Um se destaca: os carros. Os machos compram carros compridos, grandes e caros. Assim hiperegoicamente sentem-se vistos, apreciados, sedutores, em suma, mais poderosos. Quando andam pelas estradas e avenidas assumem a postura de ‘donos do pedaço’, competem, ameaçam aqueles carrinhos pequenos, velhos ou baratos (nem vou falar dos pedestres e ciclistas). Assumem posturas hostis e sem gentileza urbana, próprio dos homens das cavernas que provavelmente eram mais homens por causa do tamanho do ‘pinto’. E o pior sempre encontram parceiras e súditos que assim se deixam seduzir.
E os símbolos fálicos ganham perenidade, travestem-se nos vários automóveis com seus barulhos em caixas de sons sob o porta malas, estuprando ouvidos e violentando o bom senso. Outros bem compridos exibem através do tamanho seu poder, outros partem para o esnobismo e há ainda aqueles que agradecem aos céus pelo dom de ter o tal fetiche, como se Deus fosse dono de concessionária.
E quem não reflete, reproduz como modismo, como um processo da normalidade. O banal se instala e junto a tristeza do comum, da normose coletiva. A cada dia ficamos mais incapazes de desbanalizar o banal.
Raro quando recebemos livre de apegos um presente de alguém. Geralmente presentes estão investidos de algum interesse. Dá-se algo, mas, fica o desejo de ver o presenteado com o mimo.
Certa vez conheci uma senhora que “doou” um anel para um amigo, mas, quando não o via com anel ficava triste e algumas vezes perguntava pela doação. Outro dia ouviu dele que perdeu o presente. Pronto foi o suficiente para o afastamento e as relações definitivamente cortadas.
Conheci o Sr. João que ganhara uma quantia em dinheiro para comprar tijolos para sua casa, mas, ele acabou por usar uma parte para financiar uma TV, o que deixou o doador enraivecido: ‘pobres diabos, ajudamos e vejam o que fazem!!’
Uma idosa ‘doou’ um vaso com uma planta rara para o Felipe. Todavia, três vezes por semana passava por sua casa para visitar ‘nossa planta’. Como a visita incomodava repassou o 'presente' para outra pessoa.
O padre ao visitar as casas no interior recebe uma galinha de ‘presente’, um porco, etc.,. Certo tempo depois: 'Seu padre tenho em casa um menino pra batizar...'
Presentes em muitos casos funcionam como coleiras, correntes, prisões, interesses..., em maior ou menor grau. Não deixam de apresentarem-se como resquícios de uma tentativa infantil de relacionar-se.
Certamente há os casos de presentes doados com um grande nível de desapego, sem interesses embutidos. Estes são atos de GRATUIDADE. Acho até que os pais desde cedo devem ajudar aos filhos a exercitarem este valor, mais, tarde será de grande relevância nas relações com os outros. Dar sem esperar qualquer forma de lucro, exceto, a serenidade que fica em si mesmo.
Penso que hoje necessitamos demais de homens e mulheres livres, porque generosos na GRATUIDADE. Assim sendo, as relações seriam menos de dependência e mais de “infinita responsabilidade pelo Outro”, no dizer de Levinas.
Necessitamos de nós mesmos e precisamos do outro. Este vai-e-vem incessante cria relações interpessoais caracterizadas pelo prazer e pela angústia. Prazer pela presença que parece nos completar e angústia da incompletude que não tarda a se revelar clarividente. Há uma alegria que dura no meio dos pólos prazer e angústia: fazer o bem ao outro.
Fazer o bem sem esperar consideração de quem recebeu a bondade. Fazer o bem e sair de perto. "Esquecer" e continuar fazendo. Semear e se possível deixar que outros colham os frutos. Isto é o que se chama GRATUIDADE.
A Gratuidade nos ajuda a aceitar e a criar um biombo de proteção para não sentirmos tanto a DOR DO MUNDO.
Nos nossos dias qualquer pessoa sensível sente o grito do mundo, o grito da terra, das crianças, dos trabalhadores, das famílias, das águas, dos animais, das florestas, dos migrantes, dos pobres, dos doentes, dos sem o básico para viver com dignidade.
A dor que está fora de nós adentrando em nossa subjetividade pode empacar nosso esforço em fazer o bem ao misturar-se com nossa dor pessoal, produzindo indiferença ao que está distante de nosso próprio umbigo.
A DOR DO MUNDO pode ser cuidada com o 'unguento' da GRATUIDADE.
Durante muitos séculos grupos de homens glutões empazinaram-se de abundantes alimentos . Ficaram todos com colesterol, açúcar e álcool nas veias; CO2 de seus tabacos, veículos e fábricas nos pulmões e ventres excessivamente adiposos. Suas almas como folhas de enfeite, ficaram desidratadas por que já não havia mais razão e sentido em suas vidas frias voltadas principalmente para o deus-consumo.
Tiveram então uma grande idéia: montaram um grande festa com um banquete repleto de mesas coloridas com doces engordurados, massas globalizadas, álcool de todas as espécies e muito CO2 ainda guardados em suas charuteiras. Convidaram outros homens. Homens esquálidos, miseráveis, pobres e remediados somente para o final do jantar, para o resto que sobrou do repasto. O gran finale da idéia brilhante estava por vir: os outros homens estavam sendo convidados para ratear as despesas com os glutões. E para celebrar a desvergonha resolveram juntar-se na escandinávia, lá nas terras frias, onde dizem que pela vizinhança, na Lapônia, criaram outra reinventada fábula - a do velho Noel.
Joana está há quatro anos tentando transferir-se para outra cidade. A família está lá, tudo seu está lá onde concorre a vaga. Desta vez o melhor currículo era o dela, o melhor cabedal de experiência era o seu. Sem chances curriculares e de experiência para os outros candidatos.
Caso o bom senso ainda existisse naquela organização não haveria dúvidas: Joana realizaria o sonho de morar em sua casa própria e viver com as filhas, marido e família.
Todo o dia Joana olhava o sistema de informação desta antiga instituição federal brasileira. E lá estava ela e seus pares concorrendo, ela em primeiro lugar. Um brilho nos olhos de toda sua família, inclusive das duas filhas pequenas eram transparentes. Afinal desta vez a família estaria unida na casa que construíram, mas que ainda não era um lar completo.
Estes dias ela olhou no sistema e percebeu um novo candidato com apenas um ano na instituição concorrendo à vaga. Joana mesmo jovem já tinha mais de uma dezena de anos de experiência em várias funções. O novo candidato pelo que se via seria o último a ser escolhido.
Curiosa verificou no sistema de onde vinha este jovem candidato com tão pouca experiência, detalhe: do local anterior de onde trabalhava a atual gerente-selecionadora. Ela então pressagiou ao telefone para sua família, até então alegre e na torcida: “o jovem inexperiente será o escolhido”.
Dito e feito: lá estava no dia seguinte o nome do jovem inexperiente na centenária instituição federal brasileira, na vaga que não seria sua por merecimento.
Na verdade, Joana não fez nenhum vaticínio negativo, pois, é corriqueiro que viver neste país é se avizinhar com certos tipos de desonestidades e injustiças, assim como é certo que os espertos tentarão fingir que estavam à sua frente para tomar a vez na fila ou que algum político ou juiz colocou junto a si parente sem concurso público para receber salário à custa dos impostos dos trouxas.
Experiência, currículo e muito menos ética e caráter são levados em conta. E nestes tempos insensatos nem a lamparina da consciência se acende, nem o pudor se aclara. A praga do fisiologismo corporativista, prática conhecida também desde a fundação deste país como ‘peixada’ foi mais uma vez o norte, a baliza, o referencial.
Neste instante este caso real, se repete como clone em série entre tantas organizações onde a praga da desonestidade, da falta de pudor, da ética, da consciência comprometida, está instalada até a tampa do néo-cortex cerebral.
Vendam-se os olhos da lucidez e deixa-se solto o cinismo despudorado.
Clãs corporativos se formam em organizações públicas carregando o obscurantismo semelhante às sociedades secretas medievais, a diferença é que estas práticas não são tão secretas com a tecnologia dos sistemas de informação atuais. O que há é medo de ser perseguido e jamais crescer profissionalmente dentro da organização caso se aponte estas práticas como amorais e ilegais.
Perdura a lei da mordaça e o comportamento tribal, imperioso que divide os semelhantes entre inferiores e superiores tendo o critério espúrio do jogo de intimidades. E a quem tentar contradizer tal bandalheira os discípulos do rei vociferam: “por que não te calas!”
Grupinhos herméticos fazem escola e a cada ‘peixada’ produzem aspirantes que então festejam suas tolas orgias regadas a gargalhadas e abraços festivos. E viva a mais pura sacanagem e viva o cinismo brasileiro!!!
E antes que me perguntem sobre a Joana, bom, a Joana é o outro lado do brasileiro, o avesso do Macunaíma. Ela irá persistir na honestidade, na competência e na idoneidade ética. Continuará tentando dentro dos parâmetros legais divulgados pela organização como o único caminho para se conseguir transferências para outra cidade, mas, todos sabem que isto é um blefe organizacional, uma mera peça do estilo marketing do parecer ser.
Joana diferente da organização a qual pertence não parece ser. Ela continuará na organização fazendo o melhor, superando a média esperada. Ouvirá elogios sobre sua competência e ética, mas, ela mesma já sabe que isto não tem efeitos práticos naquela organização. Mas, jamais se converterá num Macunaíma corporativo. Continuará crendo que um dia viverá com sua família e fará de sua casa um lar.
Não sei se ela sabe, mas, ela é discípula-fiha de Jesus, de Tagore, de Luther King, de Mandela, de Paulo Freire, de Albert Schweitzer, de Gandhi, de Tolstoi...
E eu me recarrego de energias boas sabendo ainda da existência de almas nobres como a da Joana.